QUANDO AS BASES JUDAICO-CRISTÃS AMEAÇAM A IDEOLOGIA COMUNISTA
Se o ateísmo avança numa Europa pós-cristã, o cristianismo dispara no maior país comunista do mundo.
Há quase tantos cristãos na China quanto membros do Partido Comunista. O cristianismo está crescendo e o regime não gosta disso. Wei foi espancado por acreditar em D-us. Hoje, pede asilo em Portugal.
Wei não sabia para onde o levavam ao certo, mas não devia ser muito longe da sua aldeia na região de Shanxi. A viagem durou 30 minutos. Quando o carro que os levava parou, os quatro “que acreditam em D-us” foram separados e levados cada um para o seu quarto.
À espera deste operário de construção de estradas de ferro de 26 anos estavam cinco homens. “Como é que se chama o líder do culto que você frequenta e onde é que ele está?”, perguntaram-lhe. Wei não respondeu. Eles insistiram, com uma nova pergunta: “Onde é que vocês guardam o dinheiro das ofertas da sua igreja?” Wei voltou a calar-se.
À medida que as horas passavam, a frustração dos interrogadores começou a esgotar-se. Enquanto isso, fez-se noite. “Atrasado mental, por sua causa hoje vamos sair mais tarde!”, ouviu um deles a gritar-lhe, entre outros insultos. Pouco depois, começaram a agredi-lo. Demoraram pouco a passar dos tapas que lhe davam na cara para os puxões de cabelos, obrigando-o a dar voltas sobre si mesmo com as costas curvadas. Quando se desequilibrou e caiu no chão, começaram a dar pontapés por todo o corpo.
A seguir, um dos homens ordenou-lhe que se levantasse e que ficasse virado para um dos lados daquele quarto. Novamente pegando-lhe pelo cabelo, empurrou-lhe a cabeça para a frente, batendo-a contra a parede. Depois, o puxaram para trás com força, até que a sua nuca bateu na quina de uma mesa. Já eram 23h30, e por entre os cabelos pretos de Wei começou a escorrer sangue, que não demorou a manchar a camiseta de vermelho.
Finalmente, apareceu um policial fardado — a primeira pessoa que viu vestindo farda desde que foi empurrado para dentro daquele carro — que deu ordem para soltá-lo.
“Vai ao hospital tratar dessa ferida na cabeça”, disse-lhe o policial. Quando se preparava para fechar a porta do quarto, Wei ainda o ouviu dizer: “Você devia saber que na China não vale a pena ir contra o Partido Comunista. Quem manda aqui é o partido, não D-us”. Na saída, percebeu que tinha estado o tempo todo num hotel.
Wei contou a sua história ao OBSERVADOR, um jornal on-line de Lisboa, cidade europeia onde aguarda resposta ao pedido de asilo por perseguição religiosa.
A CONVERSÃO DE WEI
Dois anos antes deste incidente, Wei era apenas mais um entre os milhões de pessoas que vivem uma vida pacata e ordeira na China rural, alternando entre o trabalho e a vida pessoal, sem que para isso sintam a necessidade de um guia espiritual. De um qualquer deus. Como aquele sobre o qual um pequeno grupo falava à sua vizinha, depois de esta lhes ter aberto a porta numa pequena aldeia na região de Shanxi.
“Se o seu D-us é tão grande e tão bom, então Ele que cure a vizinha do lado”, respondeu-lhes a mulher perante a tentativa de evangelização.
A “vizinha do lado” era a mãe de Wei. Já há algum tempo que era uma pessoa doente, apesar de jovem. Sem aviso, o seu corpo ficava dormente ao ponto de ela não se conseguir manter de pé. A doença levou-a à cama, da qual já não se conseguia levantar.
Quando os sintomas começaram a ser mais graves, a família levou-a um hospital. Os médicos puseram-na a soro, o que melhorou consideravelmente o seu estado, mas não conseguiam determinar qual era a sua doença. Noutro hospital, a situação repetiu-se.
Depois, Wei foi aconselhado a levar a mãe a um velho médico de Medicina Chinesa. Este, apesar dos vários anos de experiência, também não conseguiu ajudá-la. Disse até que não era “normal uma mulher ainda nova ter tanto ar magoado dentro de si”. Chegaram a tentar um terceiro hospital, mas o resultado foi o mesmo: a saúde da mãe de Wei piorava a olhos vistos e ninguém sabia o que fazer.
O desespero tem destas coisas. Wei fez algo que nunca tinha feito antes na vida: tentou a religião. Chegou a ir para um jardim com estátuas budistas, pedir fosse a que deus fosse, que a saúde da sua mãe melhorasse. Uma vez que já tinha chegado a esse ponto, quando os missionários que momentos antes falavam com a sua vizinha lhe bateram à porta e perguntaram se podiam entrar para orarem pela sua mãe, Wei não fez mais do que pô-los à vontade.
Wei recorda esta história com um tom de voz sibilino e arrastado. Fala com bastante calma. É difícil imaginá-lo a gritar.
“Os missionários ficaram à volta da cama da minha mãe e começaram a orar por ela. E depois disso passaram a ir lá mais vezes. Passados seis meses destas orações, depois de orarem tanto pela sua saúde, ela começou a melhorar. Começou a conseguir levantar-se, deixou de passar o tempo todo na cama. Voltou a fazer os trabalhos domésticos.”
Foi quanto bastou para que Wei e a sua mãe, que sempre foram ateus, se juntassem à Igreja da Família — uma das várias organizações religiosas clandestinas que funcionam em casas particulares e que são banidas pelo Partido Comunista Chinês.
O “LIVRO VERMELHO” e a “BÍBLIA SAGRADA” NA MESMA PRATELEIRA?
A relação da China comunista, fundada em 1949, com a religião nunca foi pacífica. Na sua autobiografia, o líder religioso budista, Dalai Lama, relembra um encontro que teve em 1955 com o líder da República Popular da China, Mao Tsé-Tung. Dalai Lama recorda-se das palavras que o líder comunista lhe dirigiu: “A religião é um veneno (…). Primeiro, reduz a população, porque os monges e as freiras praticam o celibato, e, segundo, porque desvaloriza o progresso material”.
Foram os anos da Revolução Cultural, que não deixava espaço a nada que fosse para além do maoismo, cujas linhas orientadoras ficaram eternizadas no “Livro Vermelho”, com citações de Mao Tsé-Tung. Esta revolução era durou até 1976, quando, no dia 9 de Setembro o único líder que a China comunista tinha tido até então, morreu.
Seguiram-se anos de relativa reforma. E, inevitavelmente, chegaram novos livros. A “Bíblia Sagrada” foi um deles.
Em 1979, o governo chinês voltou a autorizar a existência da Igreja Patriótica das Três Autonomias. Desde essa altura que este é o único movimento de expressão cristã permitido pelo regime. E, sem surpresa, fortemente controlado pelas autoridades. Ali, doutrinas do Protestantismo são misturadas com noções de patriotismo, ou vistas à luz do combate contra o imperialismo ocidental.
Os líderes são aprovados e controlados pelas autoridades locais, para que a população não seja exposta a ideais que não as tradicionais. Segundo o The Guardian, no Partido Comunista Chinês há quem se refira ao cristianismo como “yand djiáu”. Isto é, “ensinamentos estrangeiros”.
Em reação, cada vez mais chineses começaram a juntar-se em casas particulares para realizarem cultos cristãos. Esta religião espalhou-se sobretudo nos meios rurais, onde o acesso à educação é mais difícil e o contacto com o exterior é ainda menor do que noutras partes da China.
“Começaram a aparecer muitas pessoas a dizer que eram cristãs, entre aqueles que têm poucos estudos, quase por uma questão de conveniência. No cristianismo existe um D-us que trata de tudo, podemos orar para esse D-us e pedir qualquer coisa, enquanto que no taoismo, que os chineses culturalmente conhecem melhor, existe um deus para cada coisa. Se querem saúde, têm de rezar a um. Depois para dinheiro, é outro. E se quiserem ter boas colheitas tem outro, também. Ora, no cristianismo existe um D-us para tudo.”
Quem o diz é Fenggang Yang, diretor do Centro para a Religião e Sociedade Chinesa da Purdue University, nos EUA. Na sua ótica, mais do que a ligeira abertura da liberdade religiosa na China a seguir à morte de Mao Tsé-Tung, o momento-chave que levou ao verdadeiro crescimento do cristianismo naquele país deu-se em 1989, o ano dos protestos na praça de Tiananmen, em Pequim.
“O ser humano sempre teve perguntas, faz parte da sua natureza. E depois do que se passou em Tiananmen muitas pessoas começaram a procurar um sentido para a vida delas, para o que acontecia à sua volta”, explica ao Observador, numa conversa por Skype. “Só que aí, finalmente, começaram a procurar as respostas a essas perguntas na religião, porque acharam que a política do Partido Comunista já não lhes bastava.”
Segundo Yang, a partir desse momento o cristianismo passou a ir para outros grupos da sociedade chinesa, não se restringindo aos camponeses. “Hoje em dia, a população cristã vai desde os meios mais rurais — onde há uma visão mais simples da religião — até a pessoas com estudos, jornalistas, acadêmicos… E, claro, cidadãos comuns.”
Yang nasceu, como Wei e tantos outros chineses, numa família ateia. Em 1997, foi para os EUA estudar e durante esta viagem converteu-se ao cristianismo. Poucos anos depois, em 2000, resolveu fazer uma experiência numa viagem de volta que fez ao seu país.
“Comecei a perguntar às pessoas se podiam indicar uma igreja ali por perto.” Yang sabia que estava a apenas 100 metros de uma. O seu objetivo era saber se os outros também sabiam que tinham uma igreja nas proximidades. “Ninguém sabia que havia algo do gênero naquela zona, parecia que eu estava falando de algo completamente fora do normal.”
Mas, numa viagem recente, repetiu a experiência e teve novos resultados: “Hoje em dia, você entra num táxi, pede para ir a uma igreja e o taxista até te pergunta para qual delas você quer ir!”
Não se sabe ao certo quantos cristãos vivem na China. Os números oficiais apontam para 23 milhões de protestantes — uma estimativa que muitos têm como aquém dos verdadeiros números.
Num estudo de 2010, o Pew Research Center informou que deverão existir cerca de 67 milhões de cristãos em todo o país. Algo não muito diferente dos números divulgados por Yang, que fala em 5% de toda a população e num aumento de 10% a cada ano.
Por outro lado, os números oficiais do Partido Comunista Chinês revelados em 2014 indicam que este tem 86,7 milhões de membros. O número de novas adesões nesse ano desceu pela primeira vez numa década — uma queda de 25,5%.
“Em 2030, provavelmente, a China vai ser o país com o maior número de cristãos em todo o mundo. E isso é algo que preocupa bastante o Partido Comunista, causa-lhe medo”, diz Yang.
É esse “medo” que move a perseguição aos cristãos na China, algo que se intensificou desde que Xi Jinping se tornou Presidente, em 2012. O número de relatos semelhantes ao de Wei, em que membros de grupos religiosos clandestinos são alvo de agressões e os seus líderes são presos, são cada vez maior. Ao mesmo tempo, na região de Jendjiang, foram demolidas cerca de 400 igrejas desde 2014.
Em consequência, muitos cristãos decidem abandonar a China por razões de segurança. Em março deste ano, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) [órgão responsável pelo controle da entrada de estrangeiros em Portugal] registrou o pedido de asilo de 40 cidadãos chineses. Wei foi um deles.
“Depois da agressão que sofri falei com uma pessoa da minha igreja que me falou dos perigos que eu corria. Mais tarde, disse-me que naquela vez em que eles me levaram para o hotel e me espancaram, um dos líderes do nosso grupo foi preso. Por isso, tomei a decisão de sair do meu país.”
Wei foi até uma agência de viagens que lhe foi aconselhada, por já estarem habituados a tratar de viagens de chineses que pretendem sair do país com rapidez. A troco de 80 mil Yuan (45 mil Reais), trataram-lhe do visto e da viagem. Lá, aconselharam-no a ir para Portugal. “Eles lá tratam do teu assunto depressa”, disseram-lhe. Oito meses depois de ter sido espancado naquele hotel, fez as malas, despediu-se da família e embarcou num avião. Antes de chegar em Lisboa fez escala em Istambul, na Turquia. No dia 8 de abril do ano passado, apresentou um pedido de proteção internacional ao SEF. Até hoje, aguarda uma resposta.
Wei ainda fala pouco português — e o faz com o mesmo tom de voz que usa para falar mandarim, mas neste caso as palavras vêm acompanhadas de um sorriso atrapalhado. Todos os dias, junta-se para orar com outros chineses que também alegam terem sido vítimas de perseguição religiosa no seu. As cerimônias são feitas com a ajuda de uma pequena Bíblia em mandarim.
Por enquanto ainda não conhece bem a capital portuguesa. Só foi uma vez, por livre iniciativa, ao centro da cidade, mais precisamente a uma igreja no [bairro] Martim Moniz, cuja localização exata não se recorda ao certo. Estava decidido a entrar, mas quando viu o edifício pela frente diminuiu os passos e hesitou. Pensou duas vezes e, por fim, voltou para trás. “Não sabia se era seguro.”
NOTA | Wei é um nome fictício que o jornal Observador usou por razões de segurança. Pelo mesmo motivo eles não divulgaram o nome da aldeia nem o seu endereço em Portugal.
Fonte: observador.pt
Texto: João de Almeida Dias
Fotografias: Fábio Pinto
Texto em Português do Brasil: Roberto Kedoshim
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