A CARPINTARIA NOS TEMPOS BÍBLICOS
“Então Hirão, rei de Tiro, mandou mensageiros a Davi, e madeira de cedro, e pedreiros, e carpinteiros, para lhe edificarem uma casa.” (1 Crônicas 14:1)
Provavelmente era assim a carpintaria de José em Nazaré
CONVERSA DE HOMENS
Na manhã fria de Shabbat eu estava com um grupo de amigos na cave de um prédio em Barcelos. Estávamos a participar de um café-da-manhã entre homens, um pequeno-almoço, como se diz em Portugal. Durante o café conversamos sobre os mais diversos assuntos, das preferências clubísticas à indicações de restaurantes com preços acessíveis na região. Conversa de homem.
Como acontece em muitas regiões de Portugal, havia uma miscelânea de nacionalidades. Escoceses, brasileiros, norte-americanos e, obviamente, portugueses. Após o café, uma pergunta foi lançada: “Praticar uma religião é algo mais adequado às mulheres do que aos homens?!”
Num primeiro momento me restringi a ouvir as opiniões e a observar meus companheiros de prato. Tinha alguns comentários preparados, mas estava mais inclinado a ouvir opiniões do que a expor ideias.
Da mesma forma que o grupo era ecléticos nas suas origens, também o era nas suas práticas religiosas. Alguns dos presentes apenas simpatizam com a religião enquanto outros a praticam ativamente.
Como entre os católicos normalmente é preciso no mínimo dez beatas para se começar uma procissão e os evangélicos têm por experiência que nos cultos protestantes há quase dez mulheres para cada homem, ficou o questionamento: Seria a religião uma atividade feminina?
Surgiram as mais diversas opiniões, desde a ideia de que ir à igreja é algo que se tornou uma ação social, e as mulheres são mais dadas a esses eventos, até uma complexa análise sociológica comparando o tempo de igreja com um ritual de passagem, onde o jovem menino ao atingir certa idade liberta-se desta responsabilidade evoluindo na sua formação masculina.
A conversa alongou-se e as mais diversas opiniões, ideias e teorias foram surgindo. Numa época em que o entretenimento é a religião mais praticada no mundo, os homens parecem voltar-se para atividades másculas, deixando a religião para as mulheres ou para homens, digamos, mais frágeis. Seria isso?
As respostas que iam surgindo suscitavam mais dúvidas do que esclarecimentos. Afinal de contas, a prática religiosa era ou não uma prerrogativa feminina? E se assim é, porque Jesus escolheu para si 12 discípulos e não 12 discípulas?
O autor da pergunta lembrou que Jesus não escolheu intelectuais para segui-Lo. Não escolheu artistas, escritores, poetas, mas sim homens que praticavam atividades rudes. Dos 12 apóstolos apenas Mateus, que era coletor de impostos, vinha de uma carreira burocrática. E dos que vieram a agregar-se depois, Lucas era médico e Paulo teólogo, quanto aos demais todos eram homens de profissões duras, extremamente másculas para a época.
E foi assim que chegamos à família de Jesus, cujo pai adotivo, José, e Ele próprio, notabilizaram-se por serem carpinteiros, como registra uma indagação apontada por Marcos no seu evangelho: “Não é este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de Judas e de Simão? e não estão aqui conosco suas irmãs?” (Marcos 6.3).
Um dos homens que estava presente no café-da-manhã aproveitou a oportunidade para dizer que o tema lhe era de particular interesse, pois ele também praticava a arte da carpintaria. E aproveitou para fazer uma pergunta: “Os carpinteiros da época de Jesus trabalhavam apenas com madeira ou lapidavam pedras também?”
Como, dos presentes aparentemente eu era o que melhor conhecia a cultura judaica, os olhares se voltaram para mim.
Até então meus pensamentos estavam centrados na questão da proporção homem-mulher nos cultos religiosos. Estava a pensar que no nosso café havia 13 homens, sendo que apenas 3 deles eram crianças. Se com 10 beatas se faz uma procissão e nos cultos evangélicos encontra-se 10 mulheres para cada homem, na contramão desta lógica, nos serviços realizados nas sinagogas judaicas são precisos no mínimo 10 homens adultos para que estes aconteçam. Esta é a exigência do famoso “minian”, o quórum mínimo necessário para a tefilah.
No judaísmo a prática religiosa está mais centrada na figura masculina e não na feminina. E isso não é só ficção, como no caso de Yentl, a personagem criada por Leah Napolin e Isaac Bashevis Singer e que foi interpretada no cinema pela atriz Barbra Streisand.
Neste famoso filme dos anos 70, Yentl é uma judia que se disfarça de homem para poder estudar a Torah e o Talmude. Como suposto jovem rapaz ela podia não apenas estudar como também ser contada para o minian. Na vida real algumas sinagogas chegam mesmo a manter alguns membros carentes amparados filantropicamente, desde que estes se comprometam a estar presentes nas sinagogas de forma a poder compor o minian.
Eu estava perdido nesses pensamentos quando a pergunta foi lançada: “A atividade de carpintaria era praticada conjuntamente com a de pedreiro?”
Imediatamente lembrei-me das aulas de Arqueologia Bíblica que tive em Israel, quando o Professor Elijah bar David, em baixo de um arco romano, nos explicava como as construções, mesmo em pedra, tinham por base a carpintaria. Respondi então o que sabia e interiormente comprometi-me comigo mesmo a estudar melhor o assunto.
Portanto, é deste compromisso que surgiu este artigo. Aqui vão algumas informações, que espero que sejam úteis não só para o amigo carpinteiro que participou daquele café-da-manhã e fez a intrigante pergunta, como para outros leitores possam se interessar pelo assunto.
Para mim, uma coisa ficou clara: fazer um Curso de Arqueologia Bíblica em Israel foi uma das experiências culturais mais interessantes que eu já pude algum dia experimentar.
O arqueólogo e professor Elijah bar David explicando, numa aula de campo, a forma como os carpinteiros trabalhavam conjuntamento com os pedreiros na construção de um arco nos tempos bíblicos.
A CARPINTARIA NA ÉPOCA DE CRISTO
Na época de Jesus a atividade carpinteira era relativamente comum em todo o Oriente Médio. Uma vez que não dispunha dos modernos recursos de bricolagem, a carpintaria era um trabalho pesado, que exigia profissionais não apenas hábeis no trato da madeira como fortes na sua manipulação.
Havia duas aplicações básicas para a arte: a estruturante e a mobiliária. Na estruturante, o carpinteiro trabalhava em parceria com os pedreiros, armando os “esqueletos” sobre os quais as pedras eram colocadas durante a construção de certas partes das casas. Uma vez colocadas as pedras, a estrutura de madeira era retirada e a casa estabelecida.
Antes dos romanos estabelecerem-se naquela região, as construções usavam a madeira incorporada nas mesmas, pois os telhados, os umbrais e parte das paredes eram feitas em madeira e as frestas tapadas com uma mistura de palha e barro. Com os romanos vieram as construções em arco e o papel dos carpinteiros, como construtores, passou a ser mais de apoio aos pedreiros.
Aos carpinteiros cabia o papel de encontrar madeira certa, cortar as árvores e trabalhar as vigas. Para isso eles usavam ferramentas como a enxó e o machado. Os machados eram similares ao que temos ainda hoje em dia, mas a enxó é algo que desapareceu com o tempo. Ambos tinham por objetivo moldar a madeira. Tanto um quanto outro exigiam não só habilidade como muita força física.
Enxó e Verruma, dois instrumentos de carpintaria da época de Cristo.
A princípio a parte cortante dos machados, amarradas na ponta de longos cabos de madeira, eram feitas em bronze, mas a medida em que este metal se tornou mais caro passaram fabricá-los em ferro. Mesmo assim ainda era um artefacto caro, e perdê-lo significava um grande prejuízo para o carpinteiro. Em 2 Reis 6.6 podemos ver um profissional lamentando a perda da cabeça do machado com que trabalhava: “E sucedeu que, derrubando um deles uma viga, o ferro [do machado] caiu na água; e clamou, e disse: Ai, meu senhor! ele era emprestado.”
Provavelmente eram assim os machados dos tempos bíblicos
Se cair na água ou perder-se na mata representava prejuízo, pior era quando a lâmina se soltava e atingia a cabeça de um colega de trabalho. O livro de Deuteronômio iliba o carpinteiro caso isso viesse a acontecer: “Como aquele que entrar com o seu próximo no bosque, para cortar lenha, e, pondo força na sua mão com o machado para cortar a árvore, o ferro saltar do cabo e ferir o seu próximo e este morrer, aquele se acolherá a uma destas cidades [de refúgio], e viverá.” (Deuteronômio 19.5)
Martelo, sovela, amolador e formão, instrumentos de uma carpintaria nos anos 30 d.C.
Os martelos eram feitos de pedra e se estivessem à mão poderiam até ser utilizados como arma, conforme relatos de Juízes 5.26 que fala da execução de Sísera, o chefe do exército de Canaã no reinado de Jebim. Sísera foi morto por um martelo de carpinteiro.
Obviamente que os martelos não eram instrumentos de guerra e a morte de Sísera foi uma exceção. No dia-a-dia os martelos tinham a mesma finalidade que têm hoje, fixar pregos. Por exemplo, quando Jeremias condena o uso dos ídolos pagãos, ele diz que estes eram feitos de madeira cortada com machados e que “com pregos e com martelos” eram fixados na parede (Jeremias 10.4). Os pregos a princípio eram feitos de bronze, mas depois, seguindo a mesma lógica das lâminas dos machados, passaram a ser fabricados em ferro.
Acima: Serra de uso externo que o carpinteiro usava para o corte das árvores
Abaixo: Serra de mão, para trabalhos menores dentro da própria carpintaria
O pesquisador inglês Ralph Gower, baseado em estudos de Fred Wight, diz em Usos e Costumes dos Tempos Bíblicos que as bancadas de trabalho só passaram a ser utilizadas pelos carpinteiros judeus depois da chegada dos romanos, pois até então os trabalhos eram executados no chão, do lado de fora de sua casa.
Além das portas, batentes, venezianas, mesas, bancos, baús e outras mobílias, cujos detalhes eram feitos com auxílio do enxó (imagem ao lado), os carpinteiros produziam também ferramentas agrícolas, como jugos, arados e pás.
Tudo era feito com muito esmero e valia para a época a mesma lógica que temos nos dias de hoje: os profissionais que apresentassem os melhores trabalhos naturalmente eram os mais valorizados.
Em julho de 2017 estarei novamente em Israel para fazer, na Universidade Hebraica de Jerusalém, mais uma etapa do Curso de História e Geografia Bíblica. Vai ser interessante voltar a ouvir arqueólogos e estudiosos discorrendo sobre a história e a cultura de um povo que há milênios reside naquelas terras. Povo que tem, como nenhum outro, tantos registros escritos e tantas provas arqueológicas encontradas.
Nesta nova turma teremos a participação de 17 homens e 14 mulheres, ou seja, haverá um equilíbrio de gêneros. Quem sabe no retorno possamos reunir novamente os homens para um novo café da manhã na cave de Barcelos. Assuntos para conversar não faltarão.
Espero que este texto possa inspirar outras pessoas a interessar-se pelo tema e, quem sabe, até mesmo venham a participar de novas turmas do Curso de História e Arqueologia Bíblica em Israel. Pensem nisso, ponderem sobre isso.
Aprecio os cometários sobre a história bíblica e desde já dou os meus parabéns pelo artigo. O nome divino aparece cerca de 7 mil vezes nas Escrituras Hebraicas. Porque razão são traduzidas muitas vezes as quatro letras do chamado Tetragrama (YHWH) por títulos como “Todo-Poderoso”, “Altíssimo”, e “Senhor”, quando o Tetragrama é o único nome pessoal de Deus?
William Tyndale, em 1530 na tradução do Pentateuco usou a forma “Iehouah”, o respeitado erudito bíblico judeu, Alfonso Zamora, na mesma época traduziu o tetragrama da mesma forma “Jehovah”.
Por que razão a generalidade das religiões não usam e respeitam o nome divino?