Café próximo da Sinagoga Beit Eliahu em Belmonte onde a população judaica é significativa
B DE BACA OU V DE VOLA?
Convidei um minhoto para tomar café da manhã, ou melhor, convidei-o para um pequeno-almoço, que é como se diz por aqui. “Abisa antes”, pediu-me. Abisei. Ele não foi.
Um amigo norte-americano ouviu um atleta reclamar que o adversário havia “vatido” na sua barriga e minha filha, boquiaberta, disse que uma colega de classe perguntou à professora se determinada palavra era escrita com “b” de “baca” ou “v” de “vola”. Bem vindo ao Portugal judaico.
A troca do v por b – e vice-versa – aliado à introspecção, à reserva, às barreiras sociais e à outras tradições ou vícios de linguagem é uma característica da herança judaica que paira sobre Portugal. Há sinais da passagem dos judeus nas mais diversas paragens lusitanas, e isso impacta até hoje o comportamento dos portugueses seja pela sua forma reservada de ser ou da troca do veit pelo beit.
O escritor português José Rodrigues dos Santos utilizou num dos seus livros a expressão “lefraim”, uma palavra que remete à presença presença judaica na região de Bragança, Norte de Portugal. L’Efraim seriam os descendentes de Efraim, filho de José do Egito.
Penso às vezes nos efraimitas quando ouço a pronúncia quase que indecifrável de alguns portugueses. Faz-me lembrar o episódio de Juízes 12:1-15 quando os israelitas de Gileade, liderados Jefté, enfrentaram a Tribo de Efraim.
Nesta passagem vemos que uma das formas encontradas pelos gileaditas para descobrir um adversário era pedir-lhes para pronunciar a palavra “shibboleth”, tarefa praticamente impossível para os efraimitas, que a pronunciavam com sin e não com shin.
Que a passagem dos judeus por Portugal impactou para sempre esta nação é facto inquestionável, o difícil é saber é saber o quanto.
Os números divergem, mas são sempre significativos. Segundo alguns estudos, os habitantes da Península Ibérica teriam em média 19,8% de genes judaicos, mas em algumas freguesias do Sul de Portugal há a possibilidade de até 36,3% dos habitantes serem de origem judaica.
Mas, não pensem que pelo facto – sim, facto, pois fato é paletó – não pensem que pelo facto do sangue português ter muito de azul-e-branco, as coisas são mais fáceis para os judeus por aqui.
Vejam, por exemplo, a entrevista de uma judia brasileira que mudou-se para Portugal há quase uma década e meia. Mesmo sendo judia, casada com um judeu e membro ativa da comunidade judaica lisboeta, ela sente-se deslocada e nem sempre bem aceita.
A seguir, alguns trechos da entrevista que foi publicada originalmente no jornal judaico-brasileiro Alef News.
Próximo de onde moro há esta casa de 1738 que ostenta um símbolo cruciforme utilizado pelos criptos judeus durante a Inquisição
ENTREVISTA COM FANY SECHTER RUAH
ALEF NEWS | Trechos
Quantos judeus vivem em Portugal?
Devem ser por volta de setecentos, ou menos, não há número certo. Há uma pequena comunidade de 50 pessoas no Porto (norte), uma pequena comunidade em Faro e Algarve (sul), e uma maior em Lisboa por volta de 400, a maioria sefaradi, mas nem todos participantes. Há uma comunidade maravilhosa de judeus anusim em Belmonte liderados pelo Rabino chileno-israelense Elisha Salas, que faz um trabalho sensacional por lá. Eram em torno de 150 judeus, mas muito deles estão fazendo aliá. Há várias famílias de fora vivendo em Cascais, como eu, brasileiros, ingleses, franceses, e de todas as nacionalidades que não fazem parte da Comunidade de Lisboa. Há também um grupo de jovens de fora que está estudando aqui.
Há uma comunidade organizada?
Não há entidades organizadas (Federação, Organização Sionista não existem), nem eles querem isso. A união é apenas em torno da religião. Existe uma sinagoga em Lisboa, uma em Belmonte e outra no Porto. As comunidades não interagem. Também não há uma interação entre a comunidade e a Embaixada como existe aí no Brasil. O sentimento sionista é mais forte aí, talvez pela existência de escolas judaicas. Aqui não há crianças suficientes. Meu filho estuda em uma escola internacional, em inglês. A comunidade de Lisboa tem uma escola de hebraico para adultos e crianças, mas nem todos que fazem os cursos são judeus, e Lisboa é longe de Cascais, onde estão a maioria das crianças judias. Agora há a escolinha de hebraico do Chabad em Cascais para as crianças daqui, por enquanto em inglês.
Há antissemitismo em Portugal?
Em Portugal não. Até ao contrário. Existe um sentimento geral e um certo orgulho nas pessoas daqui em ter um pouco de sangue judeu. Todos sabem que tiveram um judeu na família e há muita curiosidade e respeito pela religião judaica. Há historicamente um sentimento anti-árabe. Em outros países a coisa está ficando pior. Ouvimos muitas histórias e já evito ir a certas cidades. Portugal está apostando no Turismo Religioso. Recuperou antigas sinagogas, e locais em torno de Belmonte e na região da Beira interior onde houve uma forte presença judaica.
A comunidade judaica de Portugal é receptiva em receber judeus brasileiros que querem morar no país?
A de Lisboa não, muito pelo contrário. A comunidade de Lisboa é muito fechada e a maioria são adultos e pessoas mais velhas. Os jovens emigraram, ou casaram com não judeus. Todos os que vêm de fora têm a mesma opinião: não somos bem absorvidos, nem acolhidos, nem querem nossa participação. E no meu caso foi assim também apesar de estar casada com um português que tem a família muito atuante na comunidade. Aqui por alguma razão inexplicável, as experiências não são bem vindas, apesar de muito necessárias. Por isso, em minha opinião, a comunidade de Lisboa está diminuindo e tende a implodir um dia. Há um clube da comunidade de Lisboa, mas não há por aqui o hábito de se frequentar clubes para encontrar os amigos. É um country club, uma casa, não é ponto de encontro espontâneo entre as pessoas. Elas só vão quando há algum evento especial. Em Belmonte fui calorosamente recebida pelo rabino e pela comunidade e minha colaboração como voluntária aceita com grande carinho. O Porto tem um Rabino e a liderança comunitária é muito simpática e calorosa. A de Faro é muito pequena e não conheço bem, mas há alguns eventos em Pessach com visitantes estrangeiros. Há 4 anos, um jovem rabino Lubavitch de NY (Rabi Eli Rosenfeld) se instalou com a família em Cascais, e todos os judeus estrangeiros, inclusive eu, começamos a formar uma nova comunidade, que fala inglês, é muito ativa, alegre. Eles montaram uma escola infantil, e esta semana a Casa Chabad de Cascais recebeu sua primeira Torá em uma festa emocionante. Me orgulho de estar assistindo e participando do nascimento desta nova comunidade, e criei um blog para ela, ainda em fase de experiência, chamado Vida judaica em Cascais. O Chabad recebe muito bem os visitantes e os que vem residir aqui. Podem vir… Estudei no Liessin. Fui muito atuante na comunidade do Rio como ativista e como profissional. Organizei tantos grupos universitários, festas, participei de festivais de música, trabalhei para FIERJ, Fundo Comunitário, fiz o “Comunidade na TV”, tive sites judaicos (Fanyzine), editei o jornal do Fundo Comunitário durante 7 anos, colaborei para ALEF News e o jornal da ASA. Sinto muito a falta deste trabalho comunitário. Agora dirijo minhas energia de ativista para ajudar o Chabad e aos meu blogs Kosher Portugal e Vida Judaica em Cascais.
O que você mais/menos gosta de Portugal?
Adoro a tranquilidade de poder andar de carro de janela aberta. Gosto de poder usar relógio, gosto da educação das pessoas, das ruas muito limpas, de tudo cuidado e das coisas que funcionam. Gosto das ruas floridas. Gosto muito de não ter que andar olhando para os lados. Gosto de estar em uma sociedade que é menos consumista que a nossa, que dá valor à cultura e ao estudo. Gosto de poder planejar a longo prazo. Aqui não há a “lei de Gerson” – a de levar vantagem em tudo e ser esperto, e as pessoas não vivem desconfiando de tudo. Também é ótimo morar na União Europeia, viajo bastante, é tudo muito perto e fácil de ir. O que menos gosto é da excessiva calma, parece um paradoxo já que disse que gosto da tranquilidade, mas os brasileiros sentem isso bastante porque temos o hábito de querer resolver tudo correndo e ao mesmo tempo. Aqui é preciso ter paciência. O inverno também não é nada bom…
É fácil fazer amizades com os portugueses?
Amizade à brasileira é muito difícil. São boas pessoas, mas são mais reservados. Comparados com a nossa maneira de ser, parecem meio distantes. O nosso hábito de sair falando da vida pessoal para alguém que mal conhecemos e já virar “amigo de infância” não existe aqui. A amizade aqui se faz através das atitudes, da convivência e do tempo, não através de uma intimidade imediata. Gostam muito da nossa maneira extrovertida e sempre alegre, mas não espere que todos eles sejam como nós, a grande maioria é calma e reservada.
Quanto tempo você demorou para absorver corretamente as variações do idioma, tanto falado quanto escrito?
Estou aqui há quase 13 anos. Levei dois anos tentando entender o que falavam. Tinha que prestar tanta atenção que dormia sempre com dor de cabeça… As palavras são basicamente as mesmas, mas o uso é bem diferente. Até fiz um pequeno dicionário. Eles aqui dizem que nós falamos “brasileiro” e eles falam português. O que chama mais atenção é o fato de não usarem gerúndio. Eles não andam, estão a andar. Se estamos falando, estamos a falar. Aqui você é um tratamento muito formal, tu é informal (como o nosso você). Eles entendem bem o “brasileiro” por causa das novelas da Rede Globo, que são muitas e estão com um português cada vez pior e mais errado. Depois que aprendi alguma coisa eles resolveram fazer a reforma ortográfica… Para escrever ficou mais parecido com o nosso português, mas ainda é diferente. Muitas pessoas, como eu, adotam aqui um sistema que é escrever em “brasileiro” e mudar apenas as palavras ou expressões que possam causar confusão. Nos meus blogs e no trabalho faço assim. Quando é necessário um texto em português daqui peço para meu marido “traduzir”.
Que hábitos os portugueses tem que soam estranhos para os brasileiros?
Atender ao telefone e dizer “está lá?”. A diferença de idioma é sempre muito engraçada, mesmo depois de tantos anos. A lógica do pensamento é mesmo diferente: os portugueses pensam de forma linear e não fazem duas coisas ao mesmo tempo, é sempre uma coisa, e depois a outra. Os brasileiros pensam e fazem 10 coisas ao mesmo tempo e ficam loucos. No estacionamento, se houver tudo vazio, eles estacionam sempre colados ao carro que já está estacionado mesmo que seja o único. No restaurante é assim também, pode ter muitas mesas vazias e eles sentam ao lado de quem já está. As casas são sempre geminadas, mesmo que o terreno seja enorme. Eles estão sempre perto, mas não interagem. Nós somos o contrário, vamos falando com todo mundo mesmo gritando de longe. Aqui há uma hierarquia social definida. Eles falam o “senhor doutor”, e arquitetos e engenheiros são chamados de “senhora arquiteta”, “senhor engenheiro”. Aqui, “Doutor” é quem fez um doutorado, não é qualquer um que use gravata.
Sinagoga Beit Eliahu de Belmonte, região da Cova da Beira, Portugal.
gostaria de morar em portugal
tenho origem judaica portuguesa