RELEMBRANDO O ANIVERSÁRIO DE UM HERÓI
No dia 19 de julho de 1885 nascia em Cabanas de Viriato, uma pequena freguesia no concelho de Carregal do Sal, um dos maiores portugueses de todos os tempos: Aristides de Sousa Mendes.
Filho de família aristocrática e rica, Sousa Mendes estudou Direito na Universidade de Coimbra desenvolvendo posteriormente uma bem sucedida carreira diplomática tendo representado Portugal em Zanzibar, nos Estados Unidos da América, no Brasil e, finalmente, na França, onde uma atitude heroica acabaria por determinar o fim da sua brilhante carreira.
Sousa Mendes era cônsul de Portugal na cidade francesa de Bordeaux quando em 30 de julho de 1940, 11 dias após o seu aniversário de 55 anos, Adolf Hitler desembarcou em Paris iniciando um dos momentos mais dramáticos da história moderna da Europa. A súbita invasão nazista provocou a fuga de milhares de pessoas para o sul do país, sendo que os judeus formavam a maior parte destes deslocados.
Na época, Portugal era o único país relativamente neutro da região, razão pela qual um Visto consular português permitiria aos judeus atravessar a Espanha e chegar a Lisboa, de onde poderiam partir para a América.
Portugal, com uma triste herança de perseguição aos judeus, era governado na altura pelo ditador António de Oliveira Salazar, cujo regime tinha como eminência parda o cardeal-patriarca de Lisboa Manuel Gonçalves Cerejeira. Sempre influenciado por este líder católico, Salazar tinha ordenado a suas embaixadas para não emitir vistos de saída para russos, exilados políticos portugueses e, evidentemente, para qualquer pessoa que fosse identificada como sendo judeu.
Como em Bordeaux estava localizado um dos últimos postos diplomáticos a sul da França, o apartamento do Cônsul Geral foi cercado por uma multidão de refugiados a implorar um Visto.
Desobedecendo as ordem de Salazar, e com a ajuda da mulher, Maria Angelina e de dois filhos, Sousa Mendes escreveu, à mão, milhares de Vistos antes de ser literalmente expulso do seu posto consular. Ao final de frenéticas longas noites, Sousa Mendes havia assinado cerca de 30.000 Vistos, sendo que 10.000 deles foram destinados a fugitivos judeus.
Uma frase escrita por Sousa Mendes reflete bem o seu então estado de espírito: “Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro estar com Deus e contra os homens, do que com os homens contra Deus.”
Chamado de volta à Lisboa sabia que caminhava para o fim da sua carreira. Ao chegar à cidade fronteiriça de Bayonne, deparou-se com mais um grupo de desesperados fugitivos. Mesmo exausto, Sousa Mendes parou e assinou mais mil vistos.
Como os postos de fronteira já haviam recebido documentos que o desqualificavam como diplomata, Sousa Mendes descobriu uma pequena passagem, onde não havia telégrafo nem telefone, e, pessoalmente, conduziu um grupo de fugitivos para que estes pudessem atravessar esta fronteira providencialmente desprovida de informação.
Em poucas horas, os vistos emitidos por Aristides de Sousa Mendes salvaram dez vezes mais judeus do que Oskar Schindler e sua famosa “Lista” conseguiram fazê-lo em um ano.
Ao chegar à Lisboa, foi multado, diplomaticamente desonrado e proibido de exercer a profissão de advogado. Para sobreviver, foi vendendo paulatinamente os bens que tinha até ficar em completa miséria. Numa noite, quando refugiados judeus enfrentavam uma fila para receber um prato de sopa dos serviços de caridade, alguém olhou para uma figura franzina perfilada entre os assistidos pelo serviço de caridade. Era o ex-cônsul de Bordeaux.
Aristides de Sousa Mendes morreu no dia 03 de abril 1954, aos 68 anos, sem dinheiro e ainda em desgraça.
Ao longo dos últimos anos, Sousa Mendes foi profusamente homenageado por sua heroica atitude. Dentre os mais importantes reconhecimentos estão as homenagens feitas pelo Congresso dos Estados Unidos e pelo Governo de Israel.
Em 1979, o presidente português concedeu-lhe, a título póstumo, a Ordem da Liberdade e em 1988, depois de um longo processo, a Assembleia da República finalmente procedeu a reabilitação de Aristides de Sousa Mendes como Cônsul Geral de Portugal.
IMPORTANTES DEPOIMENTOS
DEPOIMENTO PESSOAL DO DOUTOR ARISTIDES DE SOUSA MENDES
“Não consigo dormir, viro-me para a esquerda, viro-me para a direita, ora tenho frio, ora calor, ora me tapo, ora destapo. Vivo em Bordéus e de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições. Que horas são? Tenho sede, Angelina dá-me água…
Estou sempre a zanzar de um lado para o outro, na cama e na vida. A diplomacia tem destas coisas, não dá tempo para um homem assentar e deitar raiz. Será por isso que eu torno sempre às mais profundas. Em 1908 tentaram cortá-las, no Terreiro do Paço mataram-me el-Rei D. Carlos, também o príncipe herdeiro. Lesa-majestade, lesa-vida… Dois anos depois o 5 de Outubro, bandeiras republicanas são içadas, já definha a História pátria…
César é o meu irmão gêmeo. Juntos, íamos tomar banho no rio Dão. Juntos, cursamos Direito na Universidade de Coimbra. Nosso pai é juiz. Mas César e eu optamos pela diplomacia, não pela magistratura ou advocacia. Até nas carreiras somos gêmeos. Tomamos o caminho errado? Creio que sim, somos monárquicos e, com a implantação da República, passamos a ser descriminados. Fui Cônsul na Guiana Francesa, 1 ano; em Zanzibar, África britânica, 7 anos. Ali estou sempre doente, também a minha mulher e os meus filhos. Peço para me transferirem. No Palácio das Necessidades de Lisboa, que é o Ministério dos Negócios Estrangeiros, finalmente atendem o meu pedido e mandam-me para o sul do Brasil, sou nomeado Cônsul em Curitiba.
Estamos em 1919, tenho 34 anos. Só por causa das minhas convicções monárquicas o novo Governo de Sidónio Pais, sem mais nem menos, suspende-me de funções. Consequências: inatividade, redução brutal de vencimentos e família cada vez maior. É o limiar da miséria, é o desespero. Na Embaixada portuguesa no Rio de Janeiro, César é o Encarregado de Negócios, felizmente. Movimenta-se, consegue que 34 prestigiados cidadãos portugueses, residentes em Curitiba, subscrevam um protesto contra uma campanha miserável movida contra o Cônsul português por criaturas sem vislumbre de senso moral. A iniciativa de César dá resultado: no final do ano suspendem a suspensão. Mas continuo sob mira e alvo não quero ser. Tudo se agrava, de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições…
Quatro anos mais novo do que eu, em Santa Comba Dão, no nosso distrito de Viseu, nasceu homem que vai dar muito que falar, estou em crer. Também ele cursou Direito na Universidade de Coimbra mas depois optou por Economia e Finanças, não pela Diplomacia. Em 1910, em Viseu, no Colégio do Cónego Barreiros, durante a sua conferência sobre Educação da Mocidade, ele disse: ‘A vontade deve ser educada no amor a Deus e ao próximo, no amor à família, à honra e à dignidade, ao trabalho e à verdade’. Estou de acordo. Este moço pode vir a ser uma barreira contra a falta de escrúpulos que submerge a nação. O seu nome? António de Oliveira Salazar. Um dia será alçado a lugar cimeiro do país, prevejo. Mas quando é que ele vai assumir o poder para nos salvar? Tenho pressa…
Não me deixam ficar em Curitiba, não lhes convém, a colónia portuguesa está bem ciente da perseguição que me fizeram. Mandam-me para Cônsul temporário em S. Francisco da Califórnia. Temporário é equivalente a vencimento reduzido e, em dois anos, nascem mais dois filhos meus. Outra vez o limiar da miséria, o desespero. Depois mandam-me novamente para o Brasil. Em Agosto de 24 sou Cônsul em S. Luís do Maranhão, no norte. E em Dezembro estou a gerir interinamente o Consulado de Porto Alegre, no extremo sul. Interinamente é eufemismo de ‘corte nos vencimentos’… Cansam-me estas viagens, estas deslocações sucessivas, mas o pior de tudo é a falta de dinheiro. Além do mais, de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições.
Em 1926 estou outra vez em Lisboa, presto serviço na Direção-Geral dos Negócios Comerciais e Consulares. A 28 de Maio ocorre o golpe do General Gomes da Costa, é a Ditadura Militar. Para surpresa minha, em Março de 27 sou nomeado Cônsul em Vigo, na Galiza, cargo de muito prestígio. Um amigo meu, funcionário interno do Palácio das Necessidades, diz-me que fui escolhido, por motivo de confiança, pois o regime militar vê em mim o funcionário próprio para inutilizar os manejos conspiratórios dos emigrados políticos contra a Ditadura. Os militares foram gentis, fizeram-me justiça mas estão equivocados a meu respeito: não sou um denunciante, pedras eu não atiro, nem a primeira, nem a segunda, nem qualquer outra.
Sonhar, às vezes é antecipar. Em 1928 Salazar sobe à ribalta, é ele o novo Ministro das Finanças da Ditadura Militar. Com o auxílio do exército impõe novas contribuições, veta despesas públicas, alcança o equilíbrio do orçamento, liquida a dívida flutuante e estabiliza a moeda. Já ninguém consegue arredá-lo, ou ele ou a bancarrota. Em 1930 acontece o óbvio: Salazar, de Ministro das Finanças galga a Presidente do Conselho de Ministros. Talvez possa agora restaurar a monarquia. Poderia, lá isso poderia… Poderia mas não quer pois, sem estirpe nem coroa, quem está a converter-se em soberano absoluto é o próprio Salazar, metamorfoses. Ilusão, triste ilusão a minha e agora, de Lisboa, acabo de receber más notícias, proibições…
Não correspondo às expectativas dos militares mas eles continuam a prestigiar-me, não sei porquê. Em 1929 nomeiam-me Cônsul em Antuérpia, na Bélgica. Ali permaneço durante 9 anos. Com apenas 50 anos já sou o decano do corpo diplomático. O rei belga, Leopoldo III, simpatiza muito comigo, por duas vezes me condecora. Mas em 38 sou nomeado Cônsul em Bordeaux, França. Peço para ser mantido em Antuérpia, cidade onde fiz tantos amigos. Salazar, para minha consternação, recusa o pedido e sigo para Bordeaux. De Lisboa acabo de receber más notícias…
De outras vezes o sonho converte-se em pesadelo, ânsias, ao acordar a minha apetência é gritar. Em 39 rebenta a II Guerra Mundial. Os alemães invadem a Polônia e os Países Baixos e a França, Paris é ocupada. Depois a horda ariana começa a descer para sul e sudoeste, vêm aí os assassinos! Milhares e milhares de refugiados de guerra acampam nos jardins do Consulado e nas ruas vizinhas. Franceses, belgas, holandeses, checos, austríacos e até alemães. Judeus mas também cristãos. Querem vistos para o meu país, querem vistos para a Vida. Mas de Lisboa acabo de receber más notícias, proibições: com a Presidência do Conselho, Salazar acumula agora a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros e proíbe que se passem vistos a refugiados de guerra, principalmente a israelitas. Outra vez me desilude o moço… Que faço eu? Acato a ordem do Presidente do Conselho? Impassível, vou então ficar à janela a assistir à matança dos inocentes? Não, não e não! Não sou cúmplice da chacina, vou desobedecer a Salazar, vou passar os vistos e salvar os perseguidos. Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo ordens, prefiro estar com Deus e contra os homens, que com os homens contra Deus.”
DEPOIMENTO DO JUDEU SCHMIL GOLDBERG
Meu nome é Schmil Goldberg. Mas, se quiserem, podem tratar-me por Samuel. Sou judeu e americano. Em 1941 estou em Portugal para dar assistência a refugiados de guerra, trabalho voluntário. Na Cozinha organizada pela Comunidade Israelita de Lisboa tenho a oportunidade de conhecer o Dr. Aristides de Sousa Mendes. Foi ele o diplomata, o Cônsul que, na França, passou milhares e milhares de vistos a judeus fugidos do nazismo. Uns já partiram para a América, outros ainda estão em Portugal.
Também prestamos auxílio ao Dr. Sousa Mendes, pois ele e a família estão muito carentes. Foi demitido, não recebe qualquer pensão do Governo e, apesar de licenciado em Direito, está proibido de exercer a advocacia e os seus filhos foram impedidos de frequentar a Universidade. O seu irmão, que era embaixador, também foi demitido. Vê-se que Salazar jamais perdoará o gesto humanitário do Dr. Sousa Mendes.
Num povoado do Distrito de Viseu, o ex-Cônsul possui um palácio onde chegou a albergar muitas famílias de refugiados, às quais, na França, passara vistos para entrada em Portugal. Mas, para atender às necessidades da sua numerosa família, foi obrigado a hipotecar todo o recheio. O Dr. Sousa Mendes já não dispõe de meios financeiros para sobreviver, está condenado à miséria [a casa acabaria por ficar totalmente deteriorada, conforme pode-se ver na foto acima, mas foi completamente restaurada no início do Século XXI].
Temos o dever de auxiliá-lo e auxiliamos. Até lhe proporcionamos condições para que alguns dos seus filhos emigrem para os Estados Unidos e Canadá. Os que lá se estabelecerem mandarão cartas de chamada para os outros, estou certo disso.
Há descendentes de judeus salvos por Sousa Mendes dispersos por 51 países
DEPOIMENTO DO RABINO CHAIM KRUGER
Na Polônia já estou acostumado ao anti-semitismo e não me espanta que, no outro lado, na Alemanha, Hitler tome o poder. Pelas ruas de Berlim judeus são perseguidos, espancados e mortos – é o que nos escrevem, é o que nos dizem, é o que lemos, oi gewalt. O meu nome é Chaim Kruger e sou rabino num klein shtatle, [pequeno povoado]. A guerra é inevitável, prevejo, e em breve os nazis estarão aqui. Não é fácil mas, com economias feitas penosamente, com a minha mulher e as nossas seis crianças, em 1938 conseguimos escapar de Varsóvia para Bruxelas.
Em 1939 os alemães invadem a Polônia e, logo a seguir, os Países Baixos. Com a minha família, outra vez estamos em fuga. Chegamos a Paris, mas logo fugimos para sudoeste porque os alemães já estão invadindo a França. Milhares, dezenas de milhares de refugiados, judeus e outras minorias, pejam os caminhos; são antinazis franceses, belgas e holandeses, checos e alemães, também algumas famílias ciganas. Uma, ou duas vezes por dia, caças alemães mergulham em voo rasante sobre as estradas e metralham os caminhantes. Há dezenas de mortos nas bermas, todos eles ensanguentados. Ainda ouço os gritos, choros, lamentações, oi wais mir. Quis D’us que eu, e os meus, tenhamos escapado sempre ilesos, graças a D’us, dank main G-ot. Para fugir à hecatombe, agora a nossa esperança é chegar à fronteira, atravessar a Espanha, entrar em Portugal e dali embarcar para América, onde nossos parentes nos esperam.
Chegamos a Bordeaux em Maio de 1940 e a cidade está repleta de fugitivos. Procuro o Consulado espanhol para obter o visto no passaporte da minha família, mas um funcionário diz-me que sem antes obter o visto português não conseguirei o espanhol. Saio meio atordoado com a informação; não entendo o que se passa. Cá fora um francês, também ele refugiado e, ao que suponho, comunista, explica-me:
– Rabi, Franco foi ajudado pelos nazis durante a guerra civil espanhola. É por isso que não quer no seu território fugitivos do nazismo. Só os deixa passar se forem rumo a Portugal. Salazar, o primeiro ministro português, está entalado. Portugal tem uma aliança antiquíssima com a Inglaterra e um pacto recente com a Espanha. Se hoje pender para os Aliados, será invadido pelos alemães através de Espanha. Se pender para os alemães, a Inglaterra desembarcará tropas em Portugal. É claro que a simpatia do fascista Salazar vai para Hitler. Mas tem que fingir uma estrita neutralidade para evitar a intervenção quer do Eixo, quer dos Aliados. Por isso acredito que Salazar lava as mãos e vai impedir a entrada de refugiados em Portugal. Aliás o Dr. Mendes já me disse que tem enviado centenas de telegramas para Lisboa, pedindo autorização para dar vistos e até agora não obteve qualquer resposta.
– Quem é o Dr. Mendes?
– É o Cônsul de Portugal em Bordeaux, Dr. Aristides de Sousa Mendes.
Mendes, Mendes… O nome bate-me nos ouvidos, reconheço-o, é marrano, é judeu. Tenho que falar com o Dr. Mendes.
Dirijo-me ao Consulado de Portugal. O jardim e as ruas vizinhas estão repletas de refugiados, todos a aguardar vistos para seguirem viagem, são milhares em desespero. Identifico-me, peço para falar com o Dr. Mendes. Três horas depois sou recebido. É um cavalheiro muito distinto, porém com feições angustiadas. Deve estar a viver uma grande tragédia, bem posso imaginar qual seja ela. Apresento-lhe a minha mulher e os meus filhos, conto-lhe do nosso êxodo de Varsóvia até Bordeaux. Entende o meu sofrimento porque também ele tem muitos filhos, acho que doze. Convida-nos a pousar em sua casa para darmos algum descanso às crianças.
Aceito, agradeço e pergunto-lhe se também ele é judeu. Sorrindo, esclarece:
– Rabi, não se iluda com o meu apelido Mendes. Em Portugal a religião do estado é quem nos guia, outra não podemos seguir ou mencionar. Se, por acaso, tivemos um ancestral judeu, não é nada que nos desmereça, mas disso não podemos demonstrar conhecimento.
Errei o alvo. Não sei como continuar a conversa. Engasgo-me. Depois ouso perguntar-lhe quando podemos contar com os vistos para seguir viagem para Portugal. Acabrunhado, diz-me que nada pode garantir, ainda não tem a necessária autorização do seu Governo.
– Então, Dr. Mendes, vamos ficar aqui em Bordeaux à espera da matança?
Levanta-se. Amargurado, segura-me o braço.
– Rabi, tenha fé, nem tudo está perdido, confie na Divina Providência.
Conduz-nos a sua casa, que fica no Quai Louis XVIII, por trás do Consulado. Apresenta-nos à sua esposa, D. Angelina, e a três dos seus filhos mais velhos. Indica os aposentos que nos destina. Deseja-nos um bom descanso.
É um espanto, este Dr. Mendes. Na manhã do dia 17 de Junho de 1940 avisa-me: – Rabi, sossegue, vou passar vistos a toda gente.
Nos dias 17, 18 e 19, ele e dois dos seus filhos mais velhos trabalham sem parar, nem sequer para almoçar ou jantar, a exaustão. Passam milhares e milhares de vistos, os refugiados já organizados em filas. Os passaportes são coletivos, familiares. No meu constam oito nomes, o meu, o da minha mulher e os dos meus filhos. Assim acontecendo com quase todos, calculo que o Dr. Mendes, nesses três dias, tenha passado uns 30 mil vistos, dos quais 10 mil a judeus, pelo menos.
Não se dá por contente. Obedecendo às instruções que recebera de Lisboa, o Cônsul de Portugal em Bayonne recusa-se a passar vistos aos refugiados de guerra. Porém o Dr. Mendes é seu superior. Desloca-se a Bayonne, que fica junto da fronteira franco-espanhola, e é ele mesmo quem, mais uma vez, passa milhares de vistos. O mesmo acontece com o Consulado de Portugal em Hendaye. Também aí o Dr. Mendes passa milhares de vistos. No dia 24 de Junho o Dr. Mendes mostra-me e traduz-me um telegrama que acabara de receber. É chamado imediatamente a Lisboa e acusado por Salazar, o Primeiro Ministro português, de “concessão abusiva de vistos em passaportes de estrangeiros”. Depois de 32 anos de serviço, o Dr. Mendes vai ser demitido sem receber qualquer reforma ou indenização, e tem 12 filhos para criar. Já teve 14, mas morreram 2, o segundo e o último, se não me engano. Cuidar de 12 filhos é obra! Eu que o diga, que só tenho 6 e bem sei como custa criá-los. Compadeço-me, voz embargada, ihre mazle, [má sorte a sua]. Mas é ele quem atalha, quem me anima:
– Rabi, se tantos judeus sofrem por causa de um demônio não-judeu, também eu posso sofrer com o sofrimento de tantos judeus…
A grosse Mensche, [um grande Homem], este Dr. Mendes!
DEPOIMENTO DE UM DOS SOBRINHOS DE SOUSA MENDES
Lisboa, 3 de Abril de 1954.
Estou no Hospital da Ordem Terceira, na Rua Serpa Pinto. Abro a mala, retiro o lenço enxugo os olhos. O meu tio, Dr. Aristides de Sousa Mendes, acaba de falecer, trombose cerebral agravada por pneumonia. Sua esposa, minha tia Angelina, morreu em 1948 com uma hemorragia cerebral e ficou vários meses em coma, coitada.
Todos os seus filhos, meus primos, vivem hoje nos Estados Unidos e no Canadá, conseguiram escapar a tempo deste purgatório… Sou eu a única familiar presente. O meu tio era um homem bom, sempre a pensar no bem dos outros.
É por isso que morre pobre e desonrado.
DEPOIMENTO PESSOAL DO REDATOR DESTE BLOG
Para o povo judeu, de modo informal, e para o Governo Israelense, de forma oficial, Aristides de Sousa Mendes é um Justo Entre as Nações, um Chassidei Umot HaOlam (חסידי אומות העולם). Chassidei Umot HaOlam é um termo que era utilizado no passado para se referir a gentios fiéis à uma tradição judaica conhecida como As Sete Leis de Noé. Atualmente é um título outorgado pelo Governo de Israel em reconhecimento a gentios que durante a Shoah arriscaram suas vidas para salvar judeus do extermínio nazista.
Há quatro anos, em junho de 2013, NOTÍCIAS DE SIÃO acompanhou as cerimônias de lançamento das fundações de um museu dedicado à memória de Aristides de Sousa Mendes. Na oportunidade, tivemos o privilégio de conhecer pessoalmente diversos descendentes de judeus salvos pelo cônsul de Bordeaux. Pudemos então ver concretizada diante dos nossos olhos a máxima milenar talmúdica que diz: “Quem salva uma vida humana é como se salvasse um mundo inteiro”.
FONTE: Arquivos ANDS
sempre havera pessoas onde a luz do altissimo brilha com mais intensidade
Um verdadeiro católico como lá foi tão pouco durante este período trágico que tem sido a vergonha de muitos governos.
Espero que seus descendentes tenham a mesma nobreza de alma e a mesma coragem.
L’hommage qui lui a été consacré à la télévision française m’a beaucoup intéressé.
DEVOIR de mémoire… pour les victimes MAIS aussi pour ceux qui ont tout perdu en leur venant en aide.
Cela a été le cas d’Aristide.
Paix à son âme et à celui de sa femme.