A CASA DO PASSAL
A primeira vez que visitei Cabanas de Viriato, chovia. As ruas estavam vazias e o ex libris da cidade, abandonado. Não havia ninguém na e nem próximo da Casa do Passal. Ontem havia mais de 30.000.
Há exatos 20 anos Steven Spielberg revelou ao mundo a fascinante história do empresário alemão Oskar Schindler. Responsável direto pela sobrevivência de 1.200 judeus durante a Shoah, o massacre nazista também conhecido como Holocausto. Schindler passou a ser a maior das referências de um Chassidey Umot HaOlam, ou seja, de um Justo Entre as Nações.
Enquanto Schindler era reconhecido e reverenciado em diversas partes do mundo, em Cabanas de Viriato, uma pequena freguesia do concelho de Carregal do Sal em Portugal, a casa do Passal desfazia-se aos poucos. Antiga morada de Aristides de Sousa Mendes, cônsul português em Bordéus, a casa perdeu, pouco a pouco, o resplendor do passado.
Às portas do 60º aniversário da sua morte, o nome de Sousa Mendes começa a mostrar suas reais dimensões: um gigante!
Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches foi um diplomata português que sublevou-se contra o ditador lusitano António de Oliveira Salazar quando este vetou a entrada de judeus em território português. Quando Salazar, com o fito de agradar Adolf Hitler e não prejudicar a pseudoneutralidade de Portugal na Segunda Guerra mundial, proibiu postos consulares de conceder Vistos a judeus, Sousa Mendes viu-se diante de um dilema moral: Seguir ordens erradas de um homem e preservar sua carreira ou fazer o que era correto e preservar sua consciência? Entre uma e outra, Sousa Mendes preferiu a mais nobre: emitiu 30.000 Vistos, sendo que 12 mil destes a judeus, e caiu em desgraça junto a Salazar.
A “desobediência diplomática” custou-lhe caro. Foi destituído do cargo, teve seu salário reduzido pela metade, foi proibido de exercer a advocacia e até mesmo a carta de motorista lhe foi cassada.
A família de Sousa Mendes, que era enorme, sofreu severas consequências após a queda forçada do cônsul. Além da esposa, Aristides tinha 14 filhos nascidos em três diferentes continentes: quatro eram tanzanianos, três portugueses, dois norte-americanos, dois belgas, um espanhol e dois brasileiros. A miséria abarcou a todos.
Com o passar dos anos não apenas a família desintegrou-se espalhando-se por diversos países como o patrimônio dos Sousa Mendes em Portugal desapareceu. A outrora charmosa Casa do Passal foi perdendo aos poucos seus móveis – ou “recheio” como se diz em Portugal – até acabar confiscada para quitação de dívidas. Dela restam hoje apenas ruínas. Ruínas das quais a casa poderá renascer, conforme pôde ser visto na tarde-noite desta quinta-feira, 20, em Cabanas de Viriato.
Centenas de pessoas reuniram-se diante da velha casa para prestigiarem a inauguração de uma instalação montada pelo jovem arquiteto nova-iorquino Eric Moed, ele mesmo um dos muitos descendentes de judeus salvos por Aristides de Sousa Mendes que estiveram presentes no evento.
Presente também estava Lee Sterling que tinha apenas 4 anos quando recebeu, juntamente com seus pais, um dos 30 mil ambicionados vistos que lhes permitiram chegar aos Estados Unidos. Num emocionante discurso, Lee Sterling disse:
“Muitos de nós fomos salvos diretamente por Aristides de Sousa Mendes, mas eu gosto de imaginar que meus dois filhos e meus netos, assim como milhares de outras pessoas, devem suas vidas a Aristides Sousa Mendes”. E esta era justamente a sensação que se tinha ao olhar para dezenas deles que viajaram de diversas partes do mundo para estarem nesta cerimônia em Cabanas de Viriato. “Nossa esperança é que esta viagem contribua para que a casa do Passal possa ser recuperada, para que ela possa ser um monumento à tolerância e à humanidade”, concluiu Sterling.
O DISCURSO DO EMBAIXADOR
Num dos depoimentos mais emocionantes da noite o embaixador de Israel, Ehud Gol, disse: “Não estou aqui [apenas] como embaixador de Israel, mas mais do que isso, como um judeu, um cidadão do Estado de Israel, um judeu que nasceu na cidade de Jerusalém, um judeu livre, um judeu que tem admiração por este grande português, Aristides de Sousa Mendes. Estou emocionado por estar aqui diante de tantas pessoas, cidadãos desta cidade, cada um com um grande amor, uma grande admiração por este português Aristides de Sousa Mendes. E com razão. Com razão, porque nós vivemos num mundo cheio de ódio, de cinismo, de crueldade. E é muito difícil enfrentar esses elementos que hoje regem o mundo. Poucas pessoas tem a capacidade de enfrentar esse ódio, essa crueldade. E pessoas que assim o fazem são conhecidas em Israel como ‘justo entre as nações’. Desde 1954 que há em Israel uma lista de 24.000 pessoas que salvaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial. E fizeram isso sob as circunstâncias mais difíceis. E uma dessas pessoas é Aristides de Sousa Mendes”.
Ehud Gol, constantemente interrompido por aplausos, disse apontando para as ruínas à sua frente: “Ao mesmo tempo em que estou cheio de emoção, estou também cheio de vergonha por ver a situação deste lugar”. Por um tempo olhou para as pessoas que estavam diante de si e visivelmente emocionado disse com a voz embargada: “Chegou a hora! Não em breve, mas amanhã! Chegou a hora de fazer tudo o que for necessário para salvar este lugar. Porque esta casa não é importante apenas para a família Sousa Mendes. Aristides de Sousa Mendes é um símbolo para Portugal, um orgulho para Portugal”.
O Embaixador de Israel sabe dos desafios que a Fundação ASM tem pela frente, mas nunca deixou de apoiá-los. “Nos quatro anos que sirvo como embaixador em Portugal”, continuou Ehud Gol, “encontrei-me com diversas autoridades e fiz tudo o que estava ao meu alcance para pressioná-las, no sentido de que algo seja feito por essa casa. Neste momento, estou feliz por ver que finalmente talvez tenhamos esta oportunidade. Quem sabe no futuro, quando minha missão [como embaixador] tiver terminado, e eu retornar à Portugal, quem sabe eu não possa estar aqui em Cabanas de Viriato e para participar de grandes eventos aqui, nesta casa”.
Depois de ser, uma vez mais, interrompido pelos aplausos, Ehud Gol continuou: “Oito meses atrás, o presidente [da Fundação ASM] José Leitão falou-me, com lágrimas nos olhos, sobre as dificuldades que eles tinham por desejarem fazer mais coisas e não poderem. [Na oportunidade] eu compartilhei uma ideia que tenho: como nós relembramos a cada ano, no dia 27 de Janeiro, o Dia Internacional para Memória do Holocausto (Shoah), penso que podíamos realizar aqui as cerimônias que marcam esse dia, não no Parlamento, onde nem sempre o evento é digno, pois às vezes dura apenas 5 ou 6 minutos – e o que são 6 minutos para honrar a memória de 6 milhões de pessoas? O meu sonho é que aqui, nessa casa, sob o nome de Aristides de Sousa Mendes, nos possamos celebrar o 27 de Janeiro, para Memória da Shoah. Essa vai ser uma homenagem para Aristides de Sousa Mendes e para os judeus que faleceram na Shoah, mas também um grande orgulho para esse país extraordinário que é Portugal, onde tive a honra de servir como Embaixador de Israel”.
Ehud Gol concluiu seu pronunciamento dizendo: “Mesmo regressando agora à minha terra vou continuar sendo não apenas um amigo da Fundação, mas, mais do que isso, serei um Embaixador da Fundação Aristides de Sousa Mendes em Israel”.
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A INSTALAÇÃO
Terminada a cerimônia, o arquiteto Eric Moed apresentou o seu projeto e todos foram convidados a visitar as instalações. Enquanto os visitantes esgueiravam-se pelas reduzidas dependências do recinto, cujas paredes estavam cobertas por 30 mil réplicas das assinaturas de ASM, havia no ar um sentimento, que não sabemos ao certo se foi planejado ou não pelo autor da obra, de retorno ao passado. A multidão, espremida entre as assinaturas de Aristides e as fotografias dos judeus por ele resgatados, fundia-se com estas. Desta forma, estava recriado o ambiente de aflição e frisson que marcaram aqueles dias. E desta forma os visitantes da instalação puderam vivenciar a exata sensação do que foram aqueles dias em que a sede do consulado português em Bordéus esteve apinhada de judeus ávidos por receberem seus vistos. Era como se cada visitante se juntasse às 30.000 assinaturas estampadas nas paredes e se sentisse mais um judeu entre os judeus.
A primeira vez que visitei Cabanas de Viriato, chovia. As ruas estavam vazias e o ex libris da cidade, abandonado. Não havia ninguém na ou próximo da Casa do Passal. Ontem, éramos mais de 30.000!
Há alguns anos um poeta brasileiro chamado Mário Quintana amargou diversas tentativas de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Com eleições marcadas por influências políticas e eivadas de interesses nem sempre nobres, a Academia continuamente rejeitava a candidatura do poeta gaúcho. Numa daquelas tiradas que apenas os grandes poetas são capazes de engendrar, olhando para os seus desafetos, Mário Quintana escreveu: “Eles passarão, eu passarinho”.
Na noite do dia 20 de Junho de 2013, quem teve a oportunidade de estar em Cabanas de Viriato esteve ao lado de dezenas de judeus e descendentes cujas vidas o nazismo de Hitler não conseguiu exterminar. Quem esteve diante da Casa do Passal pôde constatar aquilo que nem mesmo toda a opressão de Salazar foi capaz de abafar. Adolf Hitler é uma nódoa nas páginas da História. Portugal procura até hoje esquecer o Estado Novo de António Salazar, mas a memória do cônsul de Bordéus vive!
Eles passaram, Aristides passarinho.
IMAGENS DA CERIMÔNIA
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ESPECIAL
A foto abaixo tem um significado todo especial para o autor deste blog. Nela, eu e meus filhos, Jordana e Josh, estamos juntamente com Adriano e Iara Nigel, neto e filha de judeus resgatados pelo cônsul de Bordéus. E além do mais, a foto foi tirada pelo Mr. Lee Sterling, ele mesmo um dos 12.000 judeus salvos por Aristides de Sousa Mendes.
Quero ir lá quando estivermos em Portugal…..emocionante…..
Verônica querida… que buom ver vc e sua linda familia em um momento tão significativo. Um grande abraço
Que matéria linda Roberto. Me emocionei com as palavras do cônsul. Espero um dia ter o privilégio de estar com vocês em Portugal ou em Israel eretz. Um forte abraço a você e a sua família.
PS: Ótima matéria.
Estou sem palavras…
Orando aqui por vocês sempre.
Grande abraço.
REALMENTE A “MARCA DE UM GOL” FEITO POR EHUD, PARA A FUNDAÇÃO ASM-AA, MOSTRA A EXISTÊNCIA DE JUSTOS, SOBRE
OS INJUSTOS, À FAVOR DAS PROMESSAS DE D-US…
ASM, fez a diferença em meio a uma geração corrupta e perversa…. Merecido titulo de “Justo entre as nações”
Parabéns pelo registro e participação.
Como ficou linda esta reportagem…e as fotos, belíssimas!!!
Parabéns pela bela cobertura! Gostei muito.
Linda matéria, me emocionei.Um homem justo e corajoso merece muitas homenagens.
Embaixador de Portugal trava homenagem a Aristides de Sousa Mendes
Judeus de Buenos Aires descontentes com a decisão do diplomata. Neto de Sousa Mendes classifica esta atitude de “fascista”. E diz que Silveira Borges “deveria cessar funções”
MÁRCIO RESENDE, CORRESPONDENTE NA ARGENTINA
Dia 26 de junho, 11h30. Praça de Portugal, bairro Belgrano, Buenos Aires, Argentina. Ansiedade, memória, emoção. A Câmara Municipal presta uma homenagem histórica a Aristides de Sousa Mendes pela valentia de salvar mais de 30 mil vidas (entre 16 e 23 de junho de 1940) ao conceder vistos, desobedecendo às ordens do ditador Salazar.
Exatamente 75 anos depois, além de uma placa de homenagem, é plantada uma oliveira a partir de um galho da que Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, então cardeal de Buenos Aires, plantou na Praça de Maio em louvor aos “Justos entre as Nações” — título que descreve aqueles que arriscaram as suas vidas durante o Holocausto para salvar as de perseguidos pelo nazismo. Assistem membros da comunidade judaica na capital argentina, a maior de toda a América Latina, alguns descendentes daqueles que Sousa Mendes salvou e que têm o português como herói.
Tudo muito bonito se não fosse apenas ficção: três dias antes da homenagem, com tudo pronto, a cerimónia do dia 26 foi cancelada ou, em linguagem política, suspensa. O motivo: uma carta do embaixador português na Argentina, Henrique Silveira Borges, a Lía Rueda, presidente da Comissão de Cultura da Câmara de Buenos Aires em 19 de junho. Na carta, o embaixador português argumenta que “infelizmente, a Embaixada não teve conhecimento prévio da iniciativa. O que me surpreendeu”, destacou o embaixador.
O ato de homenagem a Sousa Mendes tinha o apoio de diversas instituições dentro e fora da Argentina: Fundação Sousa Mendes, Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA), Centro Comunitário Sergio Karakachoff, Observatório Internacional dos Direitos Humanos, Museu do Holocausto em Buenos Aires, as embaixadas de França, Alemanha e Israel, Legislatura de Buenos Aires e até do Instituto Camões.
“O único apoio que faltou foi justamente o da Embaixada de Portugal. Aquela que deveria ter apoiado com mais ênfase, disse que não com o seu silêncio. Primeiro não respondeu; depois fez gestões para proibir o ato”, explica Victor Lopes, o português autor do projeto. Lopes tinha a autorização de João Correa, diretor do filme “O Cônsul de Bordéus” (a ser transmitido no Museu do Holocausto na semana seguinte), que, em novembro passado, com o apoio da Fundação Sousa Mendes, apresentara o projeto de uma placa de homenagem na Praça Portugal na autarquia.
De acordo com e-mails a que o Expresso teve acesso, Lopes escreveu ao embaixador Silveira Borges em 21 de janeiro e em 16 de março para lhe pedir apoio institucional. Nunca obteve resposta.
“ATITUDE FASCISTA”, DIZ NETO DE SOUSA MENDES
Contactado pelo Expresso, o embaixador começou por dizer não se lembrar se viu os e-mails. Mas depois demonstrou conhecer o conteúdo das mensagens: “Tanto quanto me lembro, nesses e-mails não havia qualquer descrição sobre os contornos concretos da iniciativa da homenagem. Diziam respeito a um projeto que seria submetido à Câmara de Buenos Aires”, diz. “Soubemos que estava em preparação uma homenagem, mas não tínhamos sequer sido consultados sobre a data ou sobre a forma”, escusa-se. “Uma coisa é o objetivo do projeto de dar um enquadramento institucional à homenagem. Outra coisa são os detalhes da homenagem que só soube quando recebi o convite quatro dias antes”, defende-se.
O embaixador admite que, embora não tenha respondido aos e-mails, entrou em contacto com a Câmara de Buenos Aires em fevereiro “para saber dos contornos do projeto”. Mas não entrou em contacto com o autor do projeto: “Esse senhor é quem tem de andar à minha procura. Não sou eu quem deve andar à procura dele”, justifica. E alega que “os e-mails estavam em espanhol quando um cidadão português deveria dirigir-se à sua Embaixada em português”. “Não é avisar de que vai fazer as coisas e depois pedir o patrocínio. O procedimento correto é falar em primeiro lugar com a Embaixada. E nós preparamos o projeto que se apresenta à Câmara através da Embaixada. A Embaixada não pode ser confrontada com um facto consumado”, argumenta. Ele próprio tentou, em vão, homenagear Sousa Mendes através do MNE argentino.
A Fundação Sousa Mendes, sediada nos EUA, emitiu um comunicado no qual destaca que “a Argentina foi um destino importante para alguns dos destinatários dos vistos de Sousa Mendes”. “Lamentamos saber que o evento foi cancelado. Confiamos que os beneficiários e admiradores de Sousa Mendes na Argentina possam unir-se para organizar um novo evento pelos 75 anos”, assinam o neto Gerald Mendes, presidente do Conselho, e Olivia Mattis, presidente da Fundação.
De Portugal, a título pessoal, o neto António de Moncada Sousa Mendes considera que “a atitude do embaixador português na Argentina é uma forma aberta de autoritarismo, de falta de respeito pelos cidadãos portugueses e pela História de Portugal”. “Essa atitude é fascista. É inaceitável o boicote desse senhor que deveria cessar funções”, sentenciou.
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-08-15-Embaixador-de-Portugal-trava-homenagem-a-Aristides–de-Sousa-Mendes